JOSUÉ DE CASTRO: NUTRIÇÃO E A ORIGEM DESENVOLVIMENTISTA DA SAÚDE E DA DOENÇA

Eulália Rebeca da Silva Araújo, Ana Elisa Toscano e Raul Manhães de Castro.

Josué Apolônio de Castro foi um cientista pernambucano internacionalmente reconhecido. Obteve sua primeira formação acadêmica em Medicina, pela Universidade do Brasil, atuando também em outras áreas profissionais, incluindo a pesquisa e o ensino. Assim, enquanto docente, o exercício de Josué foi muito amplo e importante. Lecionou, dentre varias disciplinas, por exemplo, a de Fisiologia, na Faculdade de Medicina do Recife e de Geografia humana, na UnB. Durante o exílio militar, Castro também atuou como docente na Universidade de Sorbonne, na França. Outrossim, na ciência, seu pensamento e sua práxis, sempre paradigmáticos, eram a aplicação intransigente, da outrora desconhecida transdisciplinaridade (Piaget 1970). Em seus primorosos escritos, constatam-se obras que trouxeram à luz hipóteses fundamentais sobre as reais causas da fome. Josué de Castro através de suas denúncias, alicerçadas em estudos bem conduzidos, expos a fome, inicialmente em seu pais, depois no mundo, tornando-a conhecida enquanto fenômeno para além-fronteiras. Os livros publicados por Castro já engendravam concepções atualíssimas, tais como; a plasticidade fenotípica, atualmente muito estudada na biologia evolucionista. Essas obras, especialmente a Geopolítica da Fome e Geografia da Fome, foram fundamentais para a consolidação de uma noção atual mais abrangente e complexa das Ciências da Vida. Esse novo paradigma é denominado “Origem Desenvolvimentista da Saúde e da Doença” do inglês “Developmental Origins of Health and Disease (DOHaD). Josué, já na década de 30, em seus estudos, destacou as influências ambientais sobre a fisiologia humana.

Os estudos do DOHaD, através de uma visão transdisciplinar, tentam sempre correlacionar o ambiente, a evolução, o desenvolvimento humano. Nesse particular, utilizam as bases da Ecologia, Genética, Epigenética, etc. Eles consideram, por exemplo, a plasticidade fenotípica, sobretudo em resposta ao meio ambiente. O ser vivo através do seu genoma pode expressar distintos fenótipos A plasticidade fenotípica do desenvolvimento em mamíferos como o homem, um dos principais focos do DOHaD pode explicar porque insultos precoces, incluindo a desnutrição, atuam na gênese de doenças futuras. Josué de Castro já levantava o problema das sequelas da desnutrição. Em suas publicações, Castro deixa claro que fatores ambientais poderiam gerar consequências no desenvolvimento orgânico dos homens. Segundo ele, a fome causa impactos severos no indivíduo, especialmente sobre aqueles que se encontram em períodos precoces do desenvolvimento. Em Geografia da Fome, Castro expõe o alimento como necessário para o funcionamento do corpo. A fome, por outro lado, implica no desenvolvimento defeituoso das crianças, na fraqueza dos adultos e consequências no estado mental de ambos. Josué de Castro influenciou sem duvidas o arcabouço epistemológico da Nutrição como ciência, atuando não apenas nas pesquisas científicas, mas na didática do seu ensino. Para Edgar Morin (1999), a educação é o único caminho eficaz na formação de indivíduos conscientes. Segundo Freire (1970), o modelo educacional ideal deve visualizar os sujeitos como personagens ativos que atuem na troca de conhecimento. Neste cenário, surgem diferentes áreas e a consolidação do saber humano a respeito de diversas linhas e ângulos está associada ao processo epistemológico.

A contribuição epistemológica de Josué para constituição da ciência da Nutricao é verificada em toda sua obra. Em A Alimentação Brasileira à Luz da Geografia Humana, Castro (1937) traz estudos em torno do alimento. Nesta obra, observa-se uma subárea atual, denominada de Ciência e Tecnologia dos Alimentos. Josué discute sobre as vitaminas hidrossolúveis e lipossolúveis, os minerais e as principais carências existentes no Brasil. Propõe mesmo a elaboração de novos alimentos. Propõe questões nutricionais do ponto de vista metabólico. Castro tentava as vezes apaixonadamente formular um padrão dietético brasileiro para propiciar uma alimentação adequada e solucionar a fome no Brasil. Logo, julgou necessário aplicar um estudo fisiológico e também antropo-social da alimentação. Em 1931, Josué de Castro realizou uma investigação com os habitantes do Recife para compreender a influência do clima sobre o metabolismo energético. Nessa época, alguns fisiologistas haviam publicado estudos internacionais controversos sobre esta interferência. Josué encontrou medidas metabólicas próprias dos brasileiros e, baseando-se nos climogramas de Morise, estabeleceu valor padrão. Além disso, também buscou determinar o nível de atividade física daqueles indivíduos e a forma com a qual seus organismos reagiam em contato com o alimento. Segundo ele, não só a temperatura, mas a umidade relativa presente nos diferentes climas condicionavam ajustes metabólicos nos indivíduos nas diversas regiões do mundo. Esses estudos ensejaram outra subárea de Bases Experimentais da Nutrição. Aqui salienta-se, anos depois, o papel de Nelson Chaves e Naide Teodósio na utilização dos modelos animais nos estudos da Alimentação e Nutrição no pais. Nosso grande cientista também observou a necessidade de entender os aspectos regionais e culturais das populações, assim como suas condições financeiras e acessibilidade aos diferentes grupos alimentares. Ora, seu objetivo era formular um padrão dietético e para isso, seria necessário olhar a relação do indivíduo-alimento de maneira holística. Josué de Castro aplicou questionários em famílias brasileiras e estudou esses aspectos tão importantes para a Nutrição Clínica no exercício da prescrição dietética. O professor Castro trouxe à luz muitos assuntos pioneiros, que hoje estão inseridos e conectados epistemologicamente na Ciência da Nutrição. Seus estudos estimularam a formação de novos grupos de pesquisa e novas linhas de estudo na grande área da Nutrição. É notório que o legado mais importante deste cientista para a humanidade foi sua enorme produção intelectual e politica sobre o flagelo da fome. Suas obras denunciavam esta sequela da humanidade como um fenômeno social decorrente, principalmente, da má administração política. Foi Castro quem propôs que a subnutrição deveria ser solucionada pela criação de políticas públicas através do Poder Público. Muito envolvido na luta por uma alimentação adequada para todos, Josué trilha os primeiros passos do que, posteriormente, seria estudado na subárea da Nutrição em Saúde Pública.

A fundação por Castro do Periódico Arquivos Brasileiros de Nutrição, estimulou novas pesquisas sobre Nutrição em nosso país, levando, de forma gradativa, à institucionalização da área nas Universidades. Aos poucos, a Nutrição foi sendo consolidada como ciência e institucionalizada no Ensino Superior do país. Os contemporâneos de Castro, Nelson Chaves, Bertoldo Kruse, Naide Teodósio e outros também contribuíram significativamente com seus estudos sobre os problemas relacionados ao campo transdisciplinar da Nutrição. Neste cenário, Josué conecta diferentes campos do saber e cria uma ciência pluralista e dialogada com múltiplas bases de compreensão.

     Referências:

AMORIM, Helder Remígio de, et al. Josué de Castro e o tempo presente: experiências de pesquisa no campo da história. Ed. Olyver, 2021.

AMORIM, Helder Remígio de. “Um pequeno pedaço do incomensurável”: a trajetória política e intelectual de Josué de Castro. 2016.

CASTRO, Josué de. A alimentação brasileira à luz da geografia humana. 1937.

CASTRO, Josué de. Geografia da fome. 1946.

CASTRO, Josué de. Geopolítica da fome. 1961.

FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. Paz e Terra, XI edição, 1970.

MACHADO, Nilson José. Epistemologia e didática: as concepções de conhecimento e inteligência e a prática docente. São Paulo, Cortez Editora, 2011.

MORIN, Edgar. Os sete saberes necessários à educação do futuro. 1999.

VASCONCELOS, Francisco de Assis Guedes de. Os Arquivos Brasileiros de Nutrição: uma revisão sobre produção científica em nutrição no Brasil (1944 a 1968). Cadernos de Saúde Pública, v. 15, p. 303-316, 1999.

WEST-EBERHARD, Mary Jane. Phenotypic plasticity and the origins of diversity. Annual review of Ecology and Systematics, p. 249-278, 1989.

     Sobre os autores: Eulália Rebeca da Silva Araújo é Nutricionista; Ana Elisa Toscano é Professora Dra. e Coordenadora do Programa de Pós-graduação em Neuropsiquiatria e Ciências do Comportamento; e Raul Manhães de Castro é Professor Emérito. Todos pertencem a Unidade de Estudos em Nutrição e Plasticidade Fenotípica da UFPE. Todos são membros do DOHaD- Brasil.