Presidente da FeSBE, Hernandes F. Carvalho, assina ensaio no Nexo Jornal (https://bit.ly/2OIPqzY).
“A falta de um projeto para ciência e tecnologia do atual governo de Jair Bolsonaro, além de uma expectativa equivocada de resultados imediatos da atividade científica, anuncia uma tragédia iminente”.
Cortes nas bolsas de pós-graduação e especiais, bloqueios de recursos dos ministérios relacionados e ataques a universidades e instituições não universitárias de pesquisa ameaçam o atual sistema científico do país
A falta de um projeto para ciência e tecnologia do atual governo de Jair Bolsonaro, além de uma expectativa equivocada de resultados imediatos da atividade científica, anuncia uma tragédia iminente: o colapso de um sistema construído por milhares de cientistas ao longo de muitas décadas.
O crescimento que levou a ciência brasileira à 14a posição no ranking da produção científica mundial aconteceu a par e passo com o crescimento do sistema de pós-graduação e de sua unificação via Capes (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior) nos últimos 40 anos.
A ciência brasileira no seu formato atual é intrinsecamente dependente da formação universitária e da pós-graduação, ao contrário de países melhor posicionados que o Brasil nessa lista e com melhores colocações em termos de impacto da ciência produzida. Sistema hoje aferido, basicamente, pelo número de citações por artigo científico publicado em periódicos nacionais e internacionais. Nestes, a atividade científica é centrada no trabalho de profissionais contratados para o desenvolvimento da pesquisa e no treinamento em nível de pós-doutoramento.
A imbricada relação entre o ensino universitário e a atividade de pesquisa no país é uma característica única do sistema brasileiro de pesquisa. Isso se torna patente quando consideramos que 90% da produção científica nacional estão centrados nas universidades e pelo empenho de instituições de pesquisa não universitárias, como os centros de excelência da Embrapa (Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária), da Fundação Oswaldo Cruz, do Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais), que vêm sendo duramente atacados pelo governo Bolsonaro e que tentam, apesar de todas as dificuldades, manter o alto padrão nos programas de iniciação científica e de pós-graduação. Uma resultante dessa relação mútua foi o irrefreável aumento do número de programas de pós-graduação no país como um todo nos últimos anos.
Enquanto não existem dúvidas sobre a importância da pós-graduação na ciência brasileira, também não se pode negar que a associação do treinamento de recursos humanos com a realização de pesquisa científica eleva o custo desta última, em termos de insumos e tempo necessário para a sua realização.
A adoção de um sistema diferente seria admissível e desejável, caso se tratasse de um projeto de nação, com objetivos claros, com investimento de longo prazo e mobilizando principalmente o MCTIC (Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovação e Comunicações). Entretanto, atrair atenção para essa distopia parece ser esperança perdida, dados os caminhos adotados pelo atual governo, aliados a um Legislativo predominantemente omisso em sua função de modular o Executivo.
A atual configuração do sistema brasileiro de ciência e tecnologia associa-se a outra peculiaridade: a enorme dependência de bolsas de estudo e bolsas especiais, sustentadas principalmente pela própria Capes e pelo CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico). Além das fundações estaduais de amparo à pesquisa que tentam sobreviver em estados falidos que nem sempre cumprem as obrigações de repasses de recursos rotineiros.
O anúncio de suspensão da chamada de bolsas especiais feito pelo CNPq, recentemente, devido à falta de recursos, serviu como um despertar agonizante para a situação de penúria do MCTIC e de sua fraqueza no atual governo, embora os cortes realizados no primeiro semestre, da ordem de 42%, e o cancelamento do edital Universal já apontassem nessa direção.
De um lado, a suspensão do edital do CNPq atinge diretamente os pós-graduandos e pessoas envolvidas em pesquisas no exterior. Por outro lado, atinge as bolsas de pesquisa oferecidas aos cientistas brasileiros em função da sua qualificação, num processo extremamente competitivo e meritocrático.
A ciência brasileira perde quando se deixam sem garantias de funcionamento programas como os INCT (Institutos Nacionais de Ciência e Tecnologia) —anunciados como assunto de Estado pelo governo anterior na transferência de cargos —e o Acelerador de Partículas Brasileiro, conhecido como Sírius. Entretanto, essa mesma ciência recebe um golpe mortal quando se abandonam a renovação e o pagamento das bolsas especiais. São 84 mil pesquisadores ameaçados de não receber os pagamentos de suas bolsas a partir de setembro de 2019. Soma-se a essa situação a última notícia do bloqueio de mais R$ 348 milhões no Ministério da Educação, resultando em um recuo orçamentário de R$ 6,1 bilhões —o maior corte no orçamento federal —e que fere, novamente, de forma mortal todo o sistema de educação brasileiro, incluindo a pós-graduação.
Todas as tentativas de alerta feitas pela comunidade científica têm sido em vão.
Cabe-nos, mais uma vez, chamar a atenção para a gravidade dessa situação e para a necessidade de atribuição imediata de recursos ao MCTIC e, por sua vez, ao CNPq.
Cabe-nos ainda antecipar que qualquer expectativa de que o projeto Future-se traga algum alento ao sistema de ciência e tecnologia brasileiro é equivocada, tem sua origem na miscigenação com o sistema educacional e num desequilíbrio histórico entre os dois ministérios envolvidos: o da Educação e o da Ciência, Tecnologia e Inovação. Trata-se de ilusão acreditar que o sistema de ciência e tecnologia (assim como o sistema educacional em si mesmo) se sustentaria apenas por meio de parcerias, mesmo que tivessem sido pensados mecanismos compensatórios como renúncia fiscal. Parecem desconhecer que as poucas instituições que se sustentam dessa maneira beneficiam-se desses artifícios legais.
Sem um projeto nacional para a ciência e tecnologia centrado no MCTIC e sem mecanismos de transição entre o sistema atual e qualquer outro que possa ser idealizado, assistiremos ao desmantelamento da ciência brasileira em tempo mais curto que um mandato presidencial.
Hernandes F. Carvalho é professor e pesquisador da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas) e presidente da Fesbe (Federação das Sociedades de Biologia Experimental)